“É preciso parar de humilhar os pardos”, diz Beatriz Bueno, a nova voz que desafia o debate racial e agita o Brasil
- Nilson Carvalho
- 5 de mai.
- 5 min de leitura

Nesta entrevista exclusiva, a criadora do conceito “parditude” fala sobre saúde mental de pessoas pardas, colorismo, problemas nas *bancas de heteroidentificação, busca por reconhecimento além do “preto ou branco”, suas relações com o movimento negro e muito mais
Beatriz Bueno, 27 anos, é nascida e criada na Zona Leste de São Paulo. Filha de mãe preta e pai branco, ela aponta o racismo como algo presente em sua vida, desde a infância. As memórias dessa época envolvem violência física e adjetivos como "neguinha safada", “empregada” e afins. Quando buscou acolhimento no movimento negro, ouviu, por diversas vezes, que era “branca demais para estar ali” e, cansada desse “não-lugar” (“nem preta nem branca”), encontrou motivação para se tornar uma pesquisadora de racialidade. Hoje, é comunicadora, escritora e mestranda do curso de Cultura e Territorialidades da Universidade Federal Fluminense (UFF). Além disso, é idealizadora do conceito de “parditude” que, segundo ela, é “ o primeiro projeto antirracista brasileiro com foco na multirracialidade ”. Beatriz usa - para divulgar seus estudos - plataformas de mídia social como o Instagram, onde tem um número significativo de seguidores. Também mantém canais no YouTube e no TikTok, com o nome "parditude”. Nesta entrevista exclusiva, ela fala sobre saúde mental de pessoas pardas, colorismo, problemas nas bancas de heteroidentificação, busca por reconhecimento além do “preto ou branco”, suas relações com o movimento negro e muito mais.
Flavia Azevedo - O IBGE usa "pardo" desde 1950, termo que também aparece, lá atrás, em anúncios de “compra e venda” de pessoas escravizadas. Você cunhou "parditude" recentemente. Como vê a evolução dessa categoria para o IBGE e a sociedade?
Beatriz Bueno - No Brasil, a raça se vê pelo fenótipo, nosso censo oficial é baseado em cores. O termo "pardo", pela tonalidade de pele, abrangeu diferentes mestiços com esse tom de pele. "Parditude" investiga a experiência desses indivíduos. Historicamente, muita literatura aborda o mestiço, observando sua existência como boa ou ruim, opinando se a miscigenação foi positiva ou negativa para o Brasil, com visões ora racistas ora idealizadas e estereotipadas. Mas há pouca pesquisa empírica sobre a racialização desses indivíduos, como o racismo opera neles além da ascendência negra ou indígena, e pouco se ouvem suas vivências como grupo. Estudiosas como Lia Vainer, Joice Lopes e Veronica Daflon mostram em seus trabalhos que há muito sobre miscigenação, mas pouco dos próprios mestiços falando seus processos. "Parditude" foca nas questões comuns desse grupo, como estão fazendo atualmente muitos movimentos multirraciais globais, unindo mestiços de origens diversas para debater suas questões e direitos. Pardos compartilham a experiência de descender de oprimidos e opressores, vivendo isso familiar e comunitariamente, com conflitos próprios. Assim como negritude e branquitude foram termos criados para analisar experiências e privilégios de grupos, "parditude" busca investigar a vivência multirracial sem romantização ou demonização, de forma antirracista, considerando as perspectivas trazidas pelos movimentos negros e indígenas.
Você argumenta que "parditude" é o primeiro projeto antirracial brasileiro com foco na multirracialidade. Diante da histórica luta do movimento negro contra o racismo, quais os principais pontos de tensão e acordo entre esses movimentos na busca por justiça racial no Brasil?
A “parditude” como movimento e pesquisa antirracista caminha lado a lado com as pautas do movimento negro. Defendemos as políticas afirmativas, a luta por mais educação, dignidade e direitos para pessoas pardas, pretas e indígenas. Também estamos comprometidos com o resgate da herança cultural dos nossos ancestrais, muitas vezes apagada, e com o combate às persistentes consequências do racismo estrutural em nossa sociedade. A única divergência — e principal ponto de tensão — está na forma como entendemos a identidade mestiça. A “parditude” traz um olhar crítico sobre a abordagem que exige que pessoas mestiças adotem uma identidade monorracial. Não desmerecemos o importante trabalho já realizado pelo movimento negro, mas entendemos que essa lógica da hipodescendência — que vincula automaticamente o mestiço ao grupo socialmente inferior — foi importada de contextos como o apartheid sul-africano e o sistema racial dos Estados Unidos. Essa ideologia, ao ser aplicada no Brasil, ignora a realidade concreta, cultural e histórica das pessoas mestiças, cuja existência sempre foi reconhecida no nosso país. Nos anos 1970, em meio ao esforço de desmontar o mito da democracia racial, o movimento negro brasileiro, segundo Kabenguele Munanga, se inspirou em modelos estadunidenses e passou a enquadrar o mestiço dentro da identidade negra. A “parditude” reconhece a importância desse movimento para aquele momento, mas propõe avançar o debate. Em vez de sermos vistos como "negros claros", defendemos o direito de sermos reconhecidos enquanto mestiços — uma identidade legítima, com vivências e desafios próprios.
Em vez de sermos vistos como "negros claros", defendemos o direito de sermos reconhecidos enquanto mestiços — uma identidade legítima, com vivências e desafios próprios.
Beatriz Bueno
Pesquisadora
Mesmo assim, há receios no movimento negro de que a "parditude" cause divisão racial e enfraqueça políticas para negros. Como você responde a isso e como a "parditude" busca fortalecer, e não fragmentar, a luta antirracista?
Essa preocupação vem do trauma da miscigenação brasileira, um processo violento e de apagamento. O medo é de retroceder ao branqueamento, que desmobilizou pardos, indígenas e pretos. Mas o enfraquecimento das políticas para negros se deve, em grande parte, ao fato de que 60% dos brasileiros não se veem como negros. A imposição da hipodescendência não é popular, não só por inconsciência racial, mas porque culturalmente o mestiço é identificado; não tivemos "lei de uma gota". Quando o pensamento acadêmico se distancia da percepção popular, as propostas se fragilizam, rotuladas como "identitarismo".
As polêmicas nas bancas de heteroidentificação também enfraquecem as políticas, ignorando que pardos multirraciais não são vistos como negros pelo público, gerando contradições. O caso dos gêmeos idênticos em cotas, um aprovado como pardo e outro não, explorado pela direita para desacreditar as políticas, ilustra isso. A preocupação central deveria ser essa: dialogar sobre a multirracialidade, analisar criticamente os problemas, como o "limbo racial" de quem não se encaixa na monorracialidade proposta. Ignorar isso é vulnerabilidade. Tentar impor a monorracialidade no país mais multirracial do mundo é nosso calcanhar de Aquiles.
A divisão racial já existe. Incluir pardos como negros não garante uma mobilização coletiva genuína. A resistência ao meu trabalho demonstra essa divisão. Quando pardos que apoiam a "parditude" se manifestam, são hostilizados, mostrando a falta de união. Se não podemos apontar o que não funciona, a divisão persiste. Apontar essa divisão e buscar soluções é visto como criá-la, o que é culpar o mensageiro. É crucial entender que estamos expondo uma ferida aberta.
Reportagem completa no link abaixo:
Foto do(a) author(a) Flavia Azevedo
Por: Flavia Azevedo
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